top of page
  • Foto do escritorCamila

Conto: O encontro

Atualizado: 29 de set. de 2021




Conto publicado no livro Reflexões literárias e transformação social, sob o nome de Um Velho Aflito. Editora UFGD. 2019.


Matilda me levou para casa quando eu já tinha lá os meus trinta anos e me encontrava em um ponto da minha vida em que já havia sido tão desprezado e até mesmo ignorado por tanta gente, que acreditava piamente não ter mais chances de ter nenhum amigo na vida. Sempre que tentava provar meu valor a alguém, me sentia mais sozinho que nunca. Alguns pareciam tão apaixonados que me faziam acreditar que eu havia mudado a vida deles completamente, mas toda vez que me falavam isso, seguiam em frente e me deixavam para trás. Aí eu me sentia como um professor que toca a vida de um aluno na segunda série, mas que por inúmeros motivos, não continua fisicamente fazendo parte da trajetória daquele indivíduo. Eu queria mais. Eu queria ser permanente, eu era destinado a isso. Eu sabia.

Quando cheguei a seu lar, ao passo que atravessava os corredores escuros pelos quais ela me levava, minhas esperanças de me tornar íntimo aquela garota, caíam por terra. Eu conseguia prever com clareza qual seria o meu destino. Ficaria como um prisioneiro lá dentro para sempre. Tratado como um móvel velho e sem utilidade para mais ninguém, como muitas vezes havia acontecido. Passaria os dias contado quantas estrelinhas tinham no papel de parede do quarto de Matilda. Pensaria nos jeitos de esgueirar-me para perto dela e tentar chamar sua atenção. Me sentiria sozinho e quando estivesse quase enlouquecendo, tentaria conversar com os enfeites do quarto na esperança boba de que eles me respondessem. Ansioso, traçava os momentos de minha melancolia um a um, meticulosamente.

Já tinha perdido as contas de quantas vezes me embebia de ilusões imaginando que quando uma pessoa me tomava nos braços, ela ficaria para sempre comigo. Que ela gostaria de saber cada detalhe sobre mim. Andaríamos sempre juntos, iríamos ao parque, a cafeterias, a escolas, bibliotecas. Que seríamos inseparáveis. O oposto acontecia toda vez. E eu sabia que com Matilda, a coisa toda se repetiria.

Acomodei-me em sua cama e, de algum jeito, sentia que aqueles lençóis acolchoados seriam meus únicos companheiros, ou talvez, ainda poderia me deitar na poltrona de vez em quando. Assim que o pensamento me surgiu, aquela pequena moça me jogou nos braços do móvel florido que ficava em seu quarto com uma certa violência. Me ocorreu que aquele relacionamento talvez não fosse para mim. Que aquilo me despedaçasse. Que no fim disso tudo, ainda faltassem partes de mim.




Enquanto permanecia no velho sofá, observava tudo à minha volta. Os armários antigos, os murais repletos de fotos com aquela menina sorrindo em quase todas. Ao passo que observava o resto da mobília que compunha aquele ambiente, avistei a mesma garota das fotos, sentada na cama e praticamente irreconhecível. Agora o que tomava conta de seu rosto não era mais o enorme sorriso, mas sim uma enxurrada de lágrimas. Ela passava a mão pelos olhos e soluçava um choro que embora baixinho, era desolador.

Permanecemos assim durante algum tempo. Ela esfregava os olhos levemente inchados, e eu a observava em silêncio. A franja colada na testa, a curva nos lábios e o brilho das lágrimas lamentavelmente decorando suas bochechas. Então me dei conta de que estava apaixonado por Matilda. Desejava mais que tudo, agora, ser seu confidente. Gostaria de poder ajudar como sabia que poderia se ela só me desse a chance. Nunca havia conhecido alguém que quisesse tanto salvar quanto gostaria de salvar aquela garota que se movimentava poeticamente e parecia carregar sobre as costas, o peso de todo um mundo.

Depois de alguns minutos, o telefone tocou. Com a voz embargada, ela respondeu que estava bem e que a bagunça de sua vida se ajeitaria eventualmente. Consegui perceber a tensão que apareceu no ar enquanto ela escolhia as melhores palavras para responder cada pergunta. Comentou algo sobre uma briga. Me perguntei durante toda a conversa, que tipo de pessoa poderia brigar com uma menina tão doce quanto se mostrava Matilda para mim, mas aprendi com meu tempo de vida com poucos amigos e sempre observando tudo, que pessoas são por vezes complicadas e as relações entre elas, muito mais. Então ela desligou e olhou pra mim. Me colocou contra seu peito e suspirou. Quando sua respiração parecia voltar ao normal e ela aparentava uma expressão mais calma, a menina dirigiu suas primeiras palavras a mim, as quais nunca poderia esquecer, nem em um milhão de anos. "Você é meu único amigo", ela disse, e pude notar que era verdade.

Matilda acariciou minha capa, passou a mão pelas minhas folhas e, finalmente, me leu. Fizemos companhia um ao outro por horas a fio até a chegada da madrugada, então eu pude saber. Eu senti que era correspondido. Ela também se apaixonara por mim. Tive a impressão de que pela primeira vez na vida, havia encontrado um lar. Ou melhor, meu lar me encontrou.


Por Camila Machado



0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page